31.5.12

Ora então a minha noite

Andava há dia e meio a queixar-se do pé. Até aqui, nada de anormal..."ai que não aguento as minhas costas. Deve ser do colchão, também acordas assim?". Desculpa lá, a cama é nova! "Pois, realmente não faz sentido, deve ser de pegar nas meninas". Oi? Agora estás a tentar ter graça. "E esta micose na unha do dedo grande? Continuas a achar que esta morta? Que não tem salvação?". Queres mesmo saber o que acho?
Ontem, quando chegou, perguntei-lhe se ia treinar. Resposta imediata e com cara de não-venhas-com-tangas-para-cima-de-mim: "claro que vou".
Ora mostra lá o teu pé...melhorou?



Não só não melhorou, como piorou com uma rapidez assustadora.
Proíbo-te de ires treinar. E mais, vais ao médico. Já vi muito boa gente começar assim com uma infecção e acabar com uma amputação. Até já te estou a ver perneta. O que tinha as suas vantagens. Tipo, passávamos a ter desconto na compra dos carros; deixavas de jogar futebol, e depois de processarmos o mosquito que te fez essa maldade ainda éramos indemnizados...
A sua expressão foi mudando. E de "isto não é nada", ligou o modo dramático. "Ai que não me estou a sentir bem... Tenho febre, de certeza. Não aguento de dores..."
Após um telefonema para os fixes da Saúde 24, recomendaram que devia ser visto nas próximas 4 horas.
Lá fomos ao CHAA.
Na triagem:
 - então o que o traz por cá?
 - Não sei... o meu pé está assim - e ergueu-o para que o enfermeiro o visse.
 - deu alguma pancada?
 - inicialmente pensei que sim... mas (pausa) não dei...

Colocou-lhe a pulseira amarela, encaminhou-o para a sala número 5 e proibiu-me de entrar.

- Desculpe? Eu vou acompanhá-lo.
 - Não vai não, a senhora vai esperar na sala de espera. Se for necessária a sua presença chamam.

Pois com certeza que segui a direcção da sala número 5 e não da sala de espera.
A sala dos cadeirões. Com poucos doentes, maioritariamente mulheres.
A senhora da camisa de bolinhas olhava-nos e perguntou-me meia dúzia de vezes se estava à sua espera. Outras tantas, levantou-se para ir embora. Estava sozinha. Sem familiares. Ninguém se acusou quando os chamaram na sala de espera. Enfiaram-lhe uma sonda e passou para a sala das macas.
Outra senhora simulava um AVC. Entre lágrimas, gritava que não sentia o braço esquerdo. Arrastou-se pelo cadeirão e o chão amparou-a. A enfermeira mordiscou-lhe o braço e ela gritou, "está-me a magoar senhora doutora". Pois então, sente ou não sente?
Outra senhora obesa tinha como principal queixa os suores.
E outra com ar de tudo menos de doente ria que nem uma louca. Parecia estar divertida com o seu serão nas urgências.
 - A senhora está-se a rir? Olhe que não é para rir. É grave o que tem - avisou uma jovem médica.
A TAC ao cérebro mostrou alterações. Seguiu para internamento.

 - Menina, tem que sair. Já passei muitas vezes e evitei chamá-la à atenção, mas a menina abusa e agora vai ter mesmo que sair.
 - Não saio.
 - Menina, não quer que a leve por um braço, pois não?
 - Não se atreveria, com certeza. E estou tentada a encarar isso como uma ameaça, como tal encaminhe-me ao chefe de serviço.

Entretanto, já tinha no meu iphone o que prevê a legislação portuguesa no caso de acompanhamento de doentes em serviços de urgência (o que seria de mim sem o meu smartphone?).

 - nesse caso, a menina vai à sala 11 e entende-se lá com o Dr. Carlos Alpoim.
 - terei todo o gosto em tomar a vez de um doente e discutir legislação com o senhor.

O médico mandou o enfermeiro chefe "aturar-me".

 - Faz favor...
 - Insisto em acompanhar o meu marido.
 - Pode levar-me até ele.
 - Claro... aqui está... extremamente nervoso, baralhado e agonizar com dores.
Desde 2009 que a AR aprovou um diploma proposto pelo BE que prevê o acompanhamento de um doente por parte de uma pessoa da sua confiança. E ainda que cada hospital tenha sido autorizado a adaptar-se a essa alteração, não vejo como a minha presença pode ser prejudicial ou esteja a comprometer os cuidados médicos de outros doentes. E acho que estamos todos pela humanização dos serviços de saúde. Aquele idoso, por exemplo, está sozinho, expulsaram o filho e ainda há pouco um auxiliar levou-o à casa de banho e adivinhe o que aconteceu? Esqueceu-se lá do senhor que por sua vez caiu!!! E os seus gritos aflitos chegaram aqui. Sabe o que disse o auxiliar? Que tem mais coisas para fazer. Ou seja, se o senhor caiu, agora resta levantá-lo. Se o filho aqui estivesse isso não teria acontecido.

 - O seu marido não é idoso. É jovem, parece-me bem, capaz e não precisa de si aqui.
 - Ora então pergunte-lhe se a minha presença é dispensável...

O enfermeiro sorriu...

 - Vai ser identificada e pode ficar.


Talvez o meu decote tenha tido alguma utilidade, mas arrumei com ele com a minha argumentação.

O homem levou umas injecções.
E eis o que o Zyrtec pode fazer a alguém que nunca tomou mais que um benurón

ouvir contos infantis no iphone


É claro que podia contar do senhor que chegou atrapalhado com uma alergia ou da senhora que gritava "também sou um ser humano" - ninguém duvida disso, minha senhora, para ser extra-terrestre faltam-lhe algumas características, tais como, ser verde, por exemplo, umas antenas na cabeça, quiçá duas bocas, tentáculos em vez de braços. E olhe que não seria mau de todo porque talvez assim lhe dessem alguma atenção.

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