13.7.11

Para aceder a um pedido que chegou directamente do Brasil





Nesta história até posso começar pelo fim e escrever já: viveram felizes para sempre. Porque assim será. E os anos que forem já não poderão ser poucos tendo em conta os muitos que já viveram, lado a lado. Mais de meio século de vida. A dividir a fome, a partilhar a cama, a contar os tostões que se faziam poucos.
Celeste e Rogério casaram no ano em que a televisão chegou a Portugal: 1957. Já lá foram 54 anos contados em palavras que sabem a beijos. Cheiram a ternura de um casal em que o amor ainda se diz nos olhos, que brilham, como naquele primeiro momento em que se viram. Ele ficou preso àquela moça alta e magra de mise no cabelo. E nunca mais esqueceu o vestido verde de roda. E se a fotografia ainda era a preto e branco a solução foi um pouco de tinta verde. O vestido é que não podia perder a cor. Ela, gaba-lhe o ar “bem parecido”, mas como donzela prezada o desdém era a melhor arma de sedução.
A verdade é que Celeste pouco resistiu. Cedeu aos encantos do órfão, filho de mãe solteira, acabado de sair do Centro Juvenil de S. José. Trocou os bailes na Artística e nos 20 Arautos, para onde fugia, por um marido. Nove meses depois estavam casados. E abençoados por Nossa Senhora da Oliveira.
Tiveram três raparigas e um rapaz. Têm oito netos. Já podiam ter bisnetos, porque o neto mais velho tem quase 30 anos.
Vivem há 45 anos numa casa social em Urgezes. Têm três cães e dois gatos.  Um órgão que toca clássicos de manhã à noite. E ainda uma televisão ligada no terraço abrigado do sol por uma vinha cujas uvas, este ano, “adoeceram”.
O órgão cala-se, por momentos, para o velho gira discos reproduzir os tangos e as valsas, enquanto Celeste recorda a Artística e dá um pé de dança.
Costureira de ofício, o marido diz ter sido a melhor. Trabalhou em casa. E fora. Os filhos criaram-se sozinhos. Viveu a vida activa num mundo de homens a quem despertava tentações e propostas indecentes. Celeste era uma bela jovem. E fiel ao marido que confirma as mais variadas ocasiões em que a mulher foi posta à prova. E resistiu sempre. Por este amor que os une. “Nunca me deu razões para não confiar nela e nunca tive ciúmes, aconteceu muita coisa, mas ela provou sempre que me amava e respeitava”.
Hoje, com 75 anos o homem diz carinhosamente que ela “é um andor”. E explica, “não imagina o tempo que ela passa ao espelho a arranjar-se antes de sair de casa. Eu vou para o carro, espero, e torno a entrar para chamá-la porque não há maneira dela sair de casa”. A vaidade está-lhe nos lábios pintados a vermelho. No loiro do cabelo que arranja semanalmente. No cheiro da laca que lhe põe para ele não abanar com o vento. Está nas jóias que usa no pescoço e nas mãos. Nos saltos dos sapatos que insiste em calçar, mesmo quando os pés lhe doem. E na roupa, que veste como se fosse a uma festa. Na que compra amiúde e naquela que guarda no roupeiro e talvez já não chegue a usar.
É enternecedora a forma como Rogério fala dela. “É explosiva” e não resiste a contar-me quando um homem lhe ofereceu uma casa em troca de um beijo. Também ele tem vaidade na mulher com quem passeia de mão dada e com quem se senta no banco do jardim. Com ela, dividiu a fome, partilha a cama e ainda conta tostões. Com ela, faz planos de viagens a Roma ou ao Egipto, ainda que ambos saibam que nunca lá irão. Basta-lhes os passeios domingueiros. O batón nos lábios, o cão que ladra a avisar que ela chegou. Basta-lhes a vida que já não se distingue qual a parte de cada um. São duas vidas entranhadas. A fome já não dividem, mas esperam continuar por muito mais tempo a partilhar a cama e a contar os tostões.

A rasteira

Esta história é real, embora o enredo nos remeta para a mais chorosa das histórias de amor. Daquelas cujos argumentos já nem se usam. Onde o amor é mais forte que a maldade. Mais forte que a doença. Assim, como este.
Há 10 anos, Celeste andava queixosa. Apoquentava-a um ligeiro incómodo no braço. As dores de estômago já eram habituais, mas aquele sensação era de todo estranha. Procurou a médica de família que a mandou fazer uma eco e mamografia. O resultado foi esclarecedor. O cancro tinha batido à porta. Foi imediatamente encaminhada para um cirurgião. Sentada no seu consultório, com uma amiga ao lado, porque Rogério fraquejou e não quis estar presente quando os piores receios se confirmassem, Celeste ouviu, “vou ter de lhe tirar o peito”. Gritou. Fê-lo com tanta força, como se assim expulsasse o mal do corpo. No dia 5 de Maio realizou a cirurgia que lhe retirou uma mama. A bela Celeste, de lábios vermelhos e cabelo arranjado, acordou mutilada. Mas igualmente forte, “explosiva”. Agiu como se nada lhe faltasse e só numa fase inicial pediu descrição a Rogério quando a olhasse. Mas ele, admite que evitou vê-la durante muito tempo.
Seguiram-se oito penosos meses de quimioterapia que lhe custaram mais que a operação. “Quando chegava parecia que vinha de correr a maratona”. Celeste tinha medo de ficar careca, mas o cabelo não chegou a cair-lhe.
Não fez reconstrução mamária. Usa uma prótese por baixo do decote que continua a exibir. E ergueu-se da rasteira.

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