19.12.14

Nem sempre gostei de preto.


O corpo do meu pai ainda estava quente no andar de baixo e já uma tia me repreendia pela cor da minha camisola no andar de cima.
Como é que eu podia adivinhar que o meu pai morreria naquele dia?
Lembro-me de a olhar com um misto de culpa e incredulidade. Mas, fui a correr trocar a camisola vermelha que tinha vestida. Acatei aquela ordem - que hoje entendo como totalmente descabida - sem questionar.
O meu pai morreu numa segunda feira, foi enterrado na quarta. Não saí de casa nesses dias.
Na quinta tive de enfrentar a vida (sem ele).
Foi há 12 anos e lembro-me como se fosse hoje. Vesti preto integral. A minha mãe igualmente. E a minha prima, que não nos largou naqueles dias, também.
Entramos na repartição de finanças e pesamos naquelas pessoas. Era indisfarçável. Enlutadas de fresco.
 - Quem lhes morreu?
A minha mãe entalava-se. Eu engolia em seco e afastava-me. Que legitimidade tinham aquelas pessoas para invadir a minha intimidade e tornarem-se solidárias com a minha dor?
Durante uma semana vesti preto. Integral e por obrigação. Desejei tantas vezes que o meu luto fosse aquele e pesasse só na roupa.
Após a missa de sétimo dia decidi que não tinha porque me manter fiel aquele luto do corpo que me rotulava de "coitadinha da orfã". Ainda que eu fosse a coitada da orfã. Tão coitada que o meu sofrimento me enternecia a mim própria. Eu cheguei a ter pena de mim.
Um dia, ouvi a minha mãe dizer que não suportava ver-me de preto, mas não podia assumir essa posição.
Assumi-a eu.
Vestir preto por obrigação do luto é das maiores violências que nos podem infligir.

1 comentário:

  1. Completamente de acordo. Como se porventura a dor estivesse na cor da roupa e não no intimo de cada um. O preto, de que em Portugal se usa e abusa para esses fins mas noutras sociedades como a espanhola é totalmente ignorado, é quase um tributo que os familiares dos falecidos tem de pagar à sociedade pelo falecimento de um ente querido. Uma verdadeira obrigação de suscitar o dó, a compaixão e já agora satisfazer a curiosidade dos menos informados que também tem o direito de saber que naquela família,coitadinhos, morreu alguém.
    Excelente texto.

    LAC

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